terça-feira, 1 de abril de 2008

Paulo

Ninguém poderá almejar nunca obter o dom da verdade ou de algo absoluto durante a sua vida. Coloquemos pois de lado a fútil ideia de que teremos alguma vez a razão a cem por cento sobre qualquer coisa e pensemos muito seriamente de que por algo que foge do meu conhecimento, tudo o que fazemos com um propósito a alguém, ser-nos-á devolvido um dia quando menos esperamos de forma a termos consciência que há algum tempo poderemos ter errado, ou não. Estarei sempre à espera do retorno.

Lembro-me dos meus dezoito anos e da sensação leve que era viver os dias sem pensar no amanhã, ou mesmo que possíveis sacrifícios os meus pais poderiam estar a fazer para que eu tentasse como diziam “ser alguém”. Sem ser pretensioso, já na altura, mesmo tendo atitudes de jovem perfeitamente irresponsável, eu tinha a consciência de que existiam três tipos de caminhos que inevitavelmente nos poderiam dar a trilhar e até hoje nada foi modificado.

O que nos foi transmitido por repetição desde o dia em que nos cortaram o cordão umbilical e continua a ser tido como ética e moralmente perfeito, concerne em aproveitarmos todas as oportunidades de estudo que são postas à nossa disposição e tentarmos chegar ao terminus de um curso superior o mais depressa possível. No meu tempo de estudante universitário, os cursos superiores ainda valiam alguma coisa e davam no mínimo para se ser professor qualquer que fosse a disciplina a leccionar. Hoje sabemos que existem somente dois caminhos : o desemprego ou em caso de muito boas notas, uma colocação que nos pode levar longe.

Um segundo caminho consistia em divertirmo-nos o mais que podíamos e depois logo se via. Normalmente acabávamos por ser nós a pagar os nossos cursos superiores em entidades privadas e como bónus haveria sempre a eterna questão se todo o divertimento teria valido a pena e acreditem, cada caso é um caso.

O terceiro caminho foi sempre o mais doloroso e teve a ver como situações dramáticas. Uma tragédia familiar que nos obriga a trabalhar desde cedo ou a incursão no mundo da droga e do crime, terminando com todas as questões.

O meu filho tem dezoito anos.

É uma pessoa extremamente ansiosa e demasiado sensível (em todos os aspectos) para o tempo em que vivemos. Chamar-lhe-ia o “últimos dos românticos”. Por isso sofre. Sofre porque enfrentou uma separação mais ou menos brusca dos pais – embora amplamente anunciada – questionando-se ainda hoje sobre as razões da mesma, sofre porque a entidade materna padecendo de insanidade mental – sem culpa própria porque consiste numa patologia hereditária - se recusou a ajudá-lo num momento delicado da sua vida negando ainda hoje recebê-lo como o filho que em tempos amou, sofre porque foi colocado de parte por ter um dia decidido viver com o pai, sofre porque ama, sofre porque em tempos não foi amado e recebeu menos de dez por cento relativamente ao que deu, sofre porque lhe caíram em cima todas as duvidas e receios próprios da sua idade e sofre porque ainda não se encontrou e anda perdido.

Perdido? Não. Sente-se perdido. É absolutamente diferente.

As suas amplas capacidades para ser brilhante mantêm-se inalteradas e à espera de serem activadas. Digamos que a sua vida, estabilidade emocional e auto-estima são linhas paralelas que em breve se tornarão coincidentes. Disso tenho a certeza e transmito-o todas as noites quando lhe dou um beijo de carinho e boa sorte (um hábito que gostamos de manter).

Decidiu largar provisoriamente os estudos e de imediato foi apelidado de “preguiçoso e calão” pelas mais altas instâncias do absurdo, os sumos pontífices da desgraça, as mentes pedregosas da estupidez. Foi neles que procurou apoio e apresentou razões, foi deles que recebeu apupos, excomungado e comparado com outras mentes brilhantes, porém com vidas e corações muito menos nobres.

Apenas quatro pessoas o apoiaram : a irmã (que o conhece como ninguém e partilhou com ele todos os bons e maus momentos), o pai (moi même) inequivocamente sempre ao lado dos filhos, a namorada e alguém que se descobriu ser uma das suas almas gémeas pela sensatez e sensibilidade tão comuns.

Na vida, não somos obrigados a dar sempre passos em frente pois sem termos noção um deles poderá ser no abismo. Por vezes vale a pena recuar, parar para pensar e dar um passo atrás para o que se seguir possa ser mais seguro e forte. Isto é verdade nos estudos, no trabalho, na saúde, no amor. Não quero ser demagogo e dá-lo como verdade absoluta. Porém, até hoje ninguém o contestou.

Para que conste, eu escolhi a segunda opção. Diverti-me à brava e não me arrependo.

José Carlos Lucas

Quantas vezes olhou para o enorme precipício que se espairava à sua frente. De uma altitude atroz que por um lado o fazia tremer de medo, por outro era como o chamamento paranormal em direcção ao desconhecido e acima de tudo à paz, por fim sim à paz, ao esquecimento de tudo o que o atormentava neste mundo físico. Apostaria sem receio dar o passo fatal? Não estava certo mas tudo indicaria que ainda não. Embora o coração sangrasse de sofrimento, não era condição necessária e suficiente para um passo em direcção ao desconhecido ou mesmo ao mais que provável vazio total.

Certo que nunca se importara muito com as coscuvilhices pós-mortem, mas preocupava-o o facto dos seus três filhos ainda pequenos passarem a viver temporariamente sem pai e que histórias lhes inventariam sobre o que hipoteticamente se teria passado. Era quase tão doloroso pensar nisso quanto a descoberta que tinha estado a ser enganado durante meses a fio. Para além disso os problemas de nível financeiro não lhe deixavam grande escolha em virtude de serem praticamente irresolúveis e de um modo ou de outro tenderem a fazer desagregar a estrutura familiar já de si tão enfraquecida.

Sentou-se na beira do muro. O mar rugia com violência contra as rochas e pequenos salpicos conseguiam refrescar-lhe a face. Pensou na sua infância, feliz e pacata, num tempo em que ainda se podia brincar na rua e passou-lhe como slide show pela memória os amigos que visto bem, neste momento tinha consciência do quanto tinham contribuído para o seu enriquecimento pessoal e relativamente aos quais o tempo e as circunstâncias tinha separado. Quanto os desejava ter ali naquele momento. O Victor teria explicado que as coisas têm de ser racionalizadas e estes impulsos são uma consequência do sistema que nos enlouquece. O Pedro teria pedido calma e ponderação, dizendo que Deus chama quando quer e não quando nós desejamos. O Fernando rir-se-ía e colocando o braço por cima dos seus ombros diria que gajas é o que não faltam e nenhuma merece o nosso sofrimento.

Certo é que o suicídio da sua mulher deixando três filhos menores foi um choque terrível, seguido meses depois pela nova descoberta do amor. Um amor incondicional. Algo que nunca tinha sentido por alguém. A descoberta de que esse alguém tinha durante três anos escondido a manutenção da vida íntima com o marido em simultâneo com a confissão que entretanto tinha tido uma relação lésbica, quando estavam supostamente a menos de um mês de se mudarem para o que seria o seu lar, a concretização de tantas promessas, tinha-o derrotado por completo e levado ao desespero.

Como se costuma dizer, o azeite vem sempre ao de cima. Os seus filhos hão-de encontrar o apoio da pouca família que lhe resta e um dia ser-lhes-á contada toda a verdade.

Estavam assim reunidas as condições necessárias e suficientes para o grande salto em direcção ao desconhecido. Finalmente iria conhecer Deus e se nada encontrasse era porque afinal não existia.

Afinal a lei da gravidade é um facto.

José Lucas