domingo, 2 de março de 2008

Lendas de Paixão

“Lendas de Paixão”.

Um filme que me marcou quando saiu e que ontem tive a oportunidade de rever num canal de cabo, agora que se aproxima a entrega dos Óscares referentes aos trabalhos produzidos o ano passado. Quando o vi pela primeira vez fiquei surpreendido não só pelo excelente desempenho de A.Hopkins e Brad Pit mas acima de tudo por uma das mensagens passadas : na vida há um tempo para tudo, em particular para dois estados que podem afinal resumir a essência do ser humano. O tempo da sociabilidade, quando o corpo nos transmite sinais de quietude, de sedentarismo. Procuramos a estabilidade de uma companhia – independentemente da orientação sexual – que nos preencha o vazio da solidão, nos traga a calma de um mar chão. É o tempo da reprodução, da preservação da espécie, do trabalho comunitário, da transmissão de valores e princípios aos descendentes, se os houver, ou à comunidade numa partilha dinâmica. É quando o “tubarão” que está dentro de nós – no filme era um urso, mas eu gosto mais de tubarões – adormece e procura um refúgio entre duas rochas para uma hibernação suave. Por norma, são tempos de paz, sem procura incessante de mais um pouco de terreno, sem a vivência da posse que leva ao turbilhão da matança indiscriminada.

Chega porém uma altura em que o tubarão move a cauda. Os seus olhos imóveis nunca se fecharam à envolvente e o corpo começa a dar sinais de energia. Gradualmente começa a ter consciência de que há vida para além do espaço limitado para a hibernação e num impulso violento sobe para águas que domina. O mesmo acontece connosco. Só com um senão : o tubarão não tem balizas sociais, invenções legais, preconceitos passados ao longo de gerações e que nunca ninguém questiona. O tubarão procura alimento sem olhar a meios, procura dominar como um fim em si. O Homem, na sua procura incessante pela liberdade, verifica que nunca será livre pelo simples facto de que criou raízes físicas e mentais e estas são dominantes sobre a sua vontade de agir. Chegou a hora da duplicidade de sensações e vontades. O processo acelera-se quando quem nos acompanhou uma boa parte da vida, deixa de se motivar pelo acto comum, colocando-se no limiar da loucura, entre a realidade e a abstracção total, deixando voluntariamente espaço para o tubarão serpentear por águas nunca antes navegadas. O coração bombeia o sangue com uma força inimaginável fazendo com que os dias penetrem no escuro das noites iluminando-as e tornando-as tão pequenas como desnecessárias. Ficamos prontos para a vivência total, para a não dependência de leis e regras, para a integração final na natureza que nos seduz de um modo demasiado apelativo para sequer esboçarmos um piscar de olhos de recusa. É o tempo da vingança do tempo perdido. Daquele período em que as sementes brotaram uma terra estruturada. Agora nada tem estrutura e entregamo-nos languidamente ao prazer de viver, à emoção das seduções, à explosão dos sexos, à paixão, à aventura. Conseguimos vislumbrar como nunca o que temos de percorrer e o facto de o irmos fazer sem destino, entregues ao movimento das ondas, ao sentido do vento, a um olhar sedutor que nos pedirá para ficar, sabendo de antemão que jamais o faremos. Chegou o tempo do amor incondicional. A vontade de dar sem limites e tirar quando necessário. O ímpeto selvagem – ou natural – de viver. Para trás fica uma espera inócua e insensível, a corrosão dos sentimentos e o rol de promessas nunca cumpridas. As leis dos homens matam a lei do amor. Existe neste mundo o egoísmo de quem opte por ficar e obedecer às regras impostas. Existe quem não o faça e parta em busca do retorno ao ventre materno, simbolizado agora pelo amor, pela procura de outros mundos, de outras águas, num instinto de sobrevivência que só os grandes predadores têm acesso e dominam. Chegou a hora do tubarão.

José Carlos Lucas

“Monstro (do Latim monstrum) é o nome dado genericamente a uma criatura lendária de aspecto aterrorizante. Os monstros aparecem em lendas, livros e filmes de terror e nas diversas formas de mitologia. Numa história, o monstro encarna frequentemente a figura do mal que é derrotada por um cavaleiro ou herói que representa o bem e as virtudes.”

Esta é, segundo a Wikipédia, a definição base de um monstro. Como se poderá verificar aprofundando o tema, nem sempre os monstros nos atormentaram a vida. Alguns surpreendem-nos pela positiva e carregam consigo a mudança, a alternativa, o bem. Por isso muitas vezes definimos grandes mestres como “monstros da literatura, da pintura” e por aí fora. Recentemente e numa conversa de restaurante com um amigo e cliente, ele também um monstro do marketing (pese embora a sua descrença nos marketeers) concluímos que os artistas em geral fazem mover o mundo, oferecendo-nos perspectivas diferentes e enriquecedoras sobre quase tudo. Uma simples flor que para nós nada mais significa do que isso mesmo, pode transformar-se em algo notavelmente belo, triste, rejuvenescedor, se for tratado com o carinho das palavras, de um pincel ou de mãos divinamente sabedoras. Acabámos por concluir que esses são os verdadeiros monstros, os seres superiores que nos fazem sonhar, brotar uma lágrima ou esgrimir um sorriso, quando precisamente não estávamos para aí virados.

José Carlos Lucas

Pristina é hoje a mais recente capital europeia. O novo estado – o Kosovo – dá-nos a possibilidade de traçarmos mais uma fronteira no mapa da Europa, que evolui cada vez mais de uma Europa das nações para uma Europa étnica e separatista. Porém, se andarmos para trás na história, veremos que salvo raras excepções manifestamente imperialistas (casos da Espanha, França, Inglaterra e Turquia), a verdade de uma nação tem precisamente tudo a ver com a sua cultura, língua e sentido étnico, não numa perspectiva xenófoba.

Muitas das raízes da “Grande Sérvia” estão na província do Kosovo. É um facto. Mas também não deixa de ser verdade que essas raízes foram impostas pelo Marechal Tito no primeiro quartel do século XX e que há 500 anos o Kosovo era um reino independente, primeiro tomado pela Albânia e depois pela Sérvia, posterior Jugoslávia.

Tal como se fez em África no século XIX, tentou-se após a Segunda Guerra Mundial traçar a lápis e esquadro as novas fronteiras europeias sem o devido respeito pelas nações subjugadas e que comportavam características culturais (língua, bandeira, território, tradições) que as tornavam inequivocamente independentes.

Neste momento o sentido pode ser o inverso. Por isso a independência do Kosovo é tão importante e útil para uns, mas terrivelmente ameaçadora para países que incluem nas suas fronteiras nações subjugadas pela força. A França recusa determinantemente a independência da Córsega ; a Inglaterra mantém sob o seu domínio a Escócia e a Irlanda do Norte ; a Turquia ainda pensa no antigo império Otomano e considera o povo Curdo algo que não tem direito à sua auto-preservação ; a manta de retalhos chamada Espanha, mesmo tendo a consciência que um dia terminará como a antiga Jugoslávia, mantém reféns nações cultural e historicamente tão diferentes como o País Basco e a Catalunha, cujos povos têm sido desde há muito apunhalados no seu brio e orgulho nacional.

Nós, portugueses, mantemo-nos impávidos e serenos, sem opinião formada sobre todos estes assuntos, como se da Europa só quiséssemos fazer parte para receber os vários subsídios que posteriormente esbanjamos. Esquecemo-nos que por ter havido uma corte separatista e mesmo terrorista integrada no Condado Portucalense (o Kosovo cá da zona), somos hoje não só uma nação independente, mas também o mais antigo estado europeu com fronteiras fixas desde o século XIV.

José Carlos Lucas