Quantas vezes olhou para o enorme precipício que se espairava à sua frente. De uma altitude atroz que por um lado o fazia tremer de medo, por outro era como o chamamento paranormal em direcção ao desconhecido e acima de tudo à paz, por fim sim à paz, ao esquecimento de tudo o que o atormentava neste mundo físico. Apostaria sem receio dar o passo fatal? Não estava certo mas tudo indicaria que ainda não. Embora o coração sangrasse de sofrimento, não era condição necessária e suficiente para um passo em direcção ao desconhecido ou mesmo ao mais que provável vazio total.
Certo que nunca se importara muito com as coscuvilhices pós-mortem, mas preocupava-o o facto dos seus três filhos ainda pequenos passarem a viver temporariamente sem pai e que histórias lhes inventariam sobre o que hipoteticamente se teria passado. Era quase tão doloroso pensar nisso quanto a descoberta que tinha estado a ser enganado durante meses a fio. Para além disso os problemas de nível financeiro não lhe deixavam grande escolha em virtude de serem praticamente irresolúveis e de um modo ou de outro tenderem a fazer desagregar a estrutura familiar já de si tão enfraquecida.
Sentou-se na beira do muro. O mar rugia com violência contra as rochas e pequenos salpicos conseguiam refrescar-lhe a face. Pensou na sua infância, feliz e pacata, num tempo em que ainda se podia brincar na rua e passou-lhe como slide show pela memória os amigos que visto bem, neste momento tinha consciência do quanto tinham contribuído para o seu enriquecimento pessoal e relativamente aos quais o tempo e as circunstâncias tinha separado. Quanto os desejava ter ali naquele momento. O Victor teria explicado que as coisas têm de ser racionalizadas e estes impulsos são uma consequência do sistema que nos enlouquece. O Pedro teria pedido calma e ponderação, dizendo que Deus chama quando quer e não quando nós desejamos. O Fernando rir-se-ía e colocando o braço por cima dos seus ombros diria que gajas é o que não faltam e nenhuma merece o nosso sofrimento.
Certo é que o suicídio da sua mulher deixando três filhos menores foi um choque terrível, seguido meses depois pela nova descoberta do amor. Um amor incondicional. Algo que nunca tinha sentido por alguém. A descoberta de que esse alguém tinha durante três anos escondido a manutenção da vida íntima com o marido em simultâneo com a confissão que entretanto tinha tido uma relação lésbica, quando estavam supostamente a menos de um mês de se mudarem para o que seria o seu lar, a concretização de tantas promessas, tinha-o derrotado por completo e levado ao desespero.
Como se costuma dizer, o azeite vem sempre ao de cima. Os seus filhos hão-de encontrar o apoio da pouca família que lhe resta e um dia ser-lhes-á contada toda a verdade.
Estavam assim reunidas as condições necessárias e suficientes para o grande salto em direcção ao desconhecido. Finalmente iria conhecer Deus e se nada encontrasse era porque afinal não existia.
Afinal a lei da gravidade é um facto.
José Lucas
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