segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Recentemente e depois de me aplicarem algumas críticas sobre o que de pessoal escrevia, decidi não passar para a tela durante uns tempos, factos e sentimentos sobre a minha pessoa ou comigo relacionados. Aproveitei então alguns dados que tinha captado como trabalho de campo e após as autorizações necessárias, creio que esta será a melhor oportunidade para expor publicamente e em particular para a mais de meia dezena de pessoas que gentilmente lêem o que escrevo, opções, sentimentos, críticas, desabafos (a maior parte das vezes emocionados) de alguns cidadãos que por várias razões não tiveram oportunidade (ou não lhes foi dada) de expelir o que dentro de cada um deveria ter emergido na altura certa. Não lhes foram dados temas prévios. Tão somente foi pedido para falarem livremente sobre o que lhes ia na alma.

Serão testemunhos reproduzidos de um gravador de pequenas “tapes” e somente foram limadas algumas arestas de sintaxe. O discurso é directo e as pessoas em causa optaram por não omitir as suas identidades. Abençoadas sejam por uma atitude tão nobre.

1.

Alexandre Colaço, 63 anos, funcionário administrativo da loja do cidadão. Colocado neste momento na Praça dos Restauradores.

“Não sei o que dizer. Gosto daquilo que faço e com 63 anos consigo organizar-me melhor com os computadores que muita gente nova que por aqui anda. Sou casado, tenho duas filhas e três netos pequenos. Não sou politico. Mas gosto de discutir politica. Vivo em Lisboa e estou a dois anos de me reformar, se me deixarem. Isto não está fácil e todos os dias saem notícias novas que podem mudar as coisas. Se calhar quando chegar aos 65 anos sou obrigado a trabalhar até aos 70. Não se sabe.

Humm, posso falar de algumas coisas que marcaram a minha vida. O nascimento das miúdas, o meu casamento, a guerra, isso não interessa…interessa…tenho muitas memórias da guerra em África. De dois em dois anos fazemos uma almoçarada com camaradas que lutaram na Guiné. Já não nos ficamos pelo nosso pelotão porque muitos já se foram, mas procurámos mais gente que tinha lutado ali. Foi duro. Estava destacado para a região do Boé e fomos nós que transferimos o aquartelamento de Madina do Boé para outro local, perto de Cheche. O tempo era sempre quente mas isso pouco importava. A chuva e os mosquitos é que eram lixados. Ficámos perto do rio…do rio…olhe foi-se-me, mas a mosquitada não nos deixava dormir. Idade? Tinha 23 anos, isto foi em 1968 ou 67, creio que 68. Era dos poucos solteirinho no pelotão. Quando cheguei em 1966 disseram-me logo que era melhor assim pois só tinha de prestar contas a Deus. Só percebi isto depois e ainda hoje não sei se era alguma coisa politica ou por causa das pretas. Se foi política, deram-se mal. Nunca me meti nisso e naquela altura o medo não dava para pensarmos se era justo ou não estarmos ali. Era um soldado e tinha de lutar pelo meu país. Claro que no fundo não era bem assim, mas com 23 anos tava-me a lixar para se estava certo ou errado. O objectivo era sair dali vivo e voltar para Lisboa em pé. O rio era o Corubal. Um rio lamacento e cheio de mosquitos. Mas perigoso. A memória não falha caraças. Tinha alguns jacarés mas isso era normal e só os burros é que se atreviam a por o pezinho na água. Por acaso nunca houve nenhum acidente com os bichos. Morreu muita malta, junto a mim morreram quatro numa emboscada, mas comido nenhum foi. Não tivemos muitas baixas naquela zona. Era mais ou menos pacifica até 1967, 68. Depois é que foi o caraças. Depois de me vir embora contaram-me que não havia dia que não malhasse um ou dois. Foi quando o Spínola andou por lá. Parece que foi mau. Mas enquanto lá estive, não perdemos mais de 20 homens em dois anos. Uma vida é uma vida, mas a comparar com Angola aquilo era calminho. Mulheres? Sim …não não digo. Também não foi nada demais com o que se passou a guerra toda. O perigo era as doenças que as gajas traziam dos pretos. O nosso comandante dizia que era a pior arma de guerra (risos abertos). Não tenho problemas em falar sobre isso. Sou casado mas na altura não era e sou uma pessoa séria. Em 30 anos de casamento não há nada a registar de anormal. Em guerra a coisa é diferente. Mas as únicas “maldades” se assim se podem chamar, que fazíamos, era quando desconfiávamos que existiam “turras” nas aldeias. Aí varríamos aquilo mas não tocávamos nas crianças. Agora as mulheres eram escolhidas. E fazíamos o gosto ao corpo. Contra? Olhe, nunca vi nenhuma que se tivesse recusado. Não sei o que fazíamos se recusassem. Nunca nenhuma recusou (duas gargalhadas). E olhe que lhes ensinámos umas coisas (sorrisos). Mas era a guerra. Agora não temos guerra e vemos a podridão que vai por aí com as miúdas na prostituição com 14 e 15 anos. Tenho um amigo taxista que me conta que isto estás nas últimas. Brasileiras, ucranianas já ultrapassaram as portuguesas em quase todas as zonas da cidade. Se o meu amigo for atento vai ver que uma pessoa nem precisa de dizer que vai às putas. Elas encarregam-se de demonstrar que estão ali. Uma miséria. Olhe comparado com a Guiné, isto é muito pior. Nunca gostei do Salazar, mas pelo menos havia alguma decência. Hum? Claro que havia prostituição. Eu sou de Lisboa não se esqueça. Sempre houve. Mas estavam em locais que sabíamos onde eram. Agora estão espalhadas por todo o lado. Já vi engates com empregadas de restaurantes. Sabe, nós somos pessoas , os portugueses, que gostamos muito de receber e recebemos bem. Por isso deixámos entrar toda a porcaria. Agora quem se lixa é o mexilhão. A favor dos bordéis? Não…e olhe já não digo nada. Pelo menos estavam fechadas. Mas só seria a favor se as tirassem das ruas. É que são na maioria garotas. (silêncio). Olhe não me ocorre mais nada. Gostava de melhores dias para a função publica. Só isso.”

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