segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Uff calor !

São quase 6 da manhã e o Sol já vai bastante acima do horizonte. Parece que o mar acalmou um pouco após este últimos dias em que as ondas teimaram em agredir a suave e branca areia desta praia sem perder de vista. Como é hábito o sono foi-se. Tem sido assim nos últimos anos, acordar cedo. Agora já não me perturba, mas quando estava na Europa era terrível a ansiedade que vinha com o amanhecer e o despertar antes da hora marcada no celular. A falta de sono que tanto me irritava de manhã dissipou-se aqui. Agora é uma bênção acordar cedo, vislumbrar os fortes raios de Sol tentando entrar pelas frestas das tabuinhas, o som do mar espraiando-se pela praia e ela ainda dormindo. Uma visão angelical, um sorriso esboçado no sono, fruto de quem nada tem a temer, de quem nada tem a esconder, de sonhos simples e puros como o mar em que nos banhamos pela manhã.

Após quinze minutos de meditação e agradecimento por mais um dia, levanto-me e faço a higiene matinal. Bebo um sumo de aceroula misturado com iogurte e cereais – um velho hábito do velho continente – e vou num instante à praia falar com os pescadores.

Zé do Norte está visivelmente contente. Pela primeira vez desde à 3 dias conseguiu ir ao mar e a faina resultou em pleno. O grande cabaz que misteriosas forças lhe permitiam transportar estava exposto na areia macia da praia Branca, nome que provinha da cor de leite das suas areias. Falámos um pouco sobre o tempo. Zé era uma pessoa simples como ninguém pode deixar de ser por aquelas paragens, mas tinha uma mágoa que o perturbava e que me confidenciou um dia : não conseguia manejar o computador e lá em casa era o único incapaz de o fazer. Sempre lhe disse que não se preocupasse com isso, pois também ninguém lá em casa sabia manejar o seu pequeno barco com tanta mestria e ser o responsável pela alimentação de tantas bocas. Ele sorria e mostrava a dignidade que lhe ia na alma : “pois é, tem razão, mas assim estou sempre lhe incomodando para saber o tempo para amanhã. Afinal o senhor é o meu companheiro de bordo”. Eu sorria e tentava fazer entender que a vida é feita de pequenas trocas e cedências. A informação meteorológica que lhe dava todas as noites no pequeno bar que frequentávamos era largamente compensada pela certeza de ter peixe fresco pela manhã, praticamente a preço de custo e o custo era a faina que fazia todas as noites em que era possível ir ao mar. Digamos que tínhamos uma pequena sociedade ancestral e primitiva. Peixe fresco por informação e instrução que fornecia aos seus filhos antes de frequentarem a primeira escola. Nenhum tinha entrado nela sem ter a noção das letras e dos números, o que lhes fornecia alguma vantagem perante os companheiros, mas com a consciência de que a escola é para aprender e usar essa aprendizagem para poder ajudar quem não consegue acompanhar. Seguiam-no à regra e o pescador tinha por eles um orgulho incalculável. Éramos vizinhos desde que “poisara” naquela terra abençoada. No início, poucos exibiram simpatia por um extraterrestre que de malas e bagagens teve a desfaçatez de dizer que vinha para ficar e gostaria muito de criar amigos e raízes. Um intruso na comunidade que vivia à volta da grande cidade. Muitos perguntaram porque não tinha ido viver para a urbe, onde com certeza me iria adaptar melhor. Tive de lhes explicar que de cidades estava eu farto. Queria paz e vinha procurá-la ali, no contacto com a natureza e as coisas simples da vida.

Depois de negociar com o Zé, voltei para casa. Ela já se tinha levantado e expressou os seus bons dias com um beijo profundo. O seu corpo estava ainda quente contrastando com a minha pele arrefecida pela brisa matinal que, embora morna, era bastante mais fria que o seu doce tacto. Sorriu e delicadamente passou uma gota de geleia por baixo dos meus calções ao mesmo tempo que me transportava para a nossa cama.

Com algumas poupanças que tinha trazido do preconceituoso continente, consegui implementar na cidade uma pequena academia que ministrava aulas e sessões de reiki, tai-chi, yoga e onde trabalhava uma boa parte do dia. Não me iria tornar rico com tudo aquilo, mas dava para levar uma vida tranquila e no limiar daquilo que sempre sonhara para mim. Ela por vezes passava por lá. Simplesmente para me dar um beijo de boa tarde ou almoçarmos algo simples e conversarmos um pouco. Tinha decidido trabalhar na cidade. Éramos um pouco diferentes mas nada que colocasse em causa o interesse comum pela natureza e o respeito pela dimensão tempo, uma exigência minha de anos atrás. O tempo era importante. A sua gestão adequada trazia harmonia ao corpo e à alma. Ambos os factores tempo e espaço tinham de ter uma simbiose perfeita para que estivéssemos em consonância com a natureza. Era sinal de saúde e bem estar. Quando por acaso o corpo entrava em desequilíbrio, aqueles factores eram preponderantes para um redimensionar das coisas e uma cura rápida e efectiva. Tempo, espaço.

Quando os primeiros raios de Sol teimavam em queimar o horizonte era sinal de que o ciclo do dia e da energia pulsante se estavam a esgotar. Sentávamo-nos no alpendre a usufruir da beleza que o anoitecer dispensava aos sentidos. A mistura radiosa de cores, o perfume das plantas e o som das ondas, eram o estupefaciente perfeito para nos inebriar e transmitir que mais um dia se tinha passado. O ciclo mudava. A noite iniciava-se calma e ritmada.

A maior parte do ano as temperaturas eram quentes o que nos permitia jantar no alpendre. Refeições simples que nos preparavam para noites tranquilas. Conversávamos sobre os acontecimentos do dia e mirávamos as estrelas, comparando os mapas astrológicos de dias anteriores. Surpreendentemente ela tinha mostrado um interesse por astronomia e tornara-se perita em fazer mapas astronómicos com uma minuciosidade impressionante. Explicava-me onde se localizavam as principais constelações e os seus extraordinários movimentos. Deliciava-me com aquilo.

Após o jantar dávamos um longo passeio pela praia que embora escura já não o era aos nossos olhos. Conhecíamos todos os recantos, todas as pedras e conchas que o mar nos trazia. No início, as ondas eram matreiras e faziam-nos partidas como que a dizer “que fazem aqui no nosso território?”. Mas depois de quilómetros caminhados, éramos praticamente companheiros de viagem das mesmas e todas sem excepção nos vinham dar as boas noites. Dizem que as ondas são únicas. Não acreditem. Aquelas nós conhecíamos e respeitando a sua sazonalidade sorriam no seu bater na praia.

O bar da Tété era como um templo para onde quase todos convergiam à noite. Na conversa com amigos, no bebericar de uma cerveja ou de um sumo natural, renovávamos a fé na humanidade porque em tempo tínhamos duvidado da sua racionalidade. Ali, encontrámos a resposta para a descrença no bicho Homem. Simplicidade. Das coisas simples, de gente simples e sem preconceitos vinha a verdadeira essência do Ser Humano. Era ali que se definia a diferença entre nós e o Rock (o cão lá de casa).

Após o convívio e a salutar troca de ideias ou o acompanhar vibrante de um jogo de futebol, regressávamos a casa. Meditávamos cerca de vinte minutos numa harmonização energética que nos permitisse sentir que fazíamos parte de algo mais lato que este pequeno planeta. Depois sorriamos e beijávamo-nos. Os seus olhos meigos indicavam uns dias cansaço, noutros pedidos clementes de saciedade. Fazíamos amor e nunca sabíamos quando tínhamos terminado…ou se algum dia terminaríamos. Estávamos convencidos que isso nunca aconteceria e mesmo quando a nossa energia lhe espalhasse pelo Universo, estaríamos juntos.

José Carlos Lucas

P.S. – Ontem a mãe de um amigo deixou-nos. Espero que a sua energia se congregue e ganhe força para ajudar os seus entes queridos que choram a sua partida. Todavia meu amigo João, não foi uma partida mas sim uma transformação. Um transporte de energia para outro local do Universo. Não obstante a falta física que nos corrói, onde estiver, estará sempre presente e senti-lo-ás no teu coração.

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