Fica decretado que hoje, nesta terra, se celebra o paraíso. Fica também decretado que todos somos anjos, mesmo aqueles considerados, pela sociedade, diabos. Hoje o sol é uma fonte, tal como as fontes de água. A terra está cheia de árvores e de segredos que se escondem na raiz dessas árvores. Fica decretado que ninguém vai ter medo do arame farpado e de outras vedações que delimitam os terrenos de ervas cortadas e com cheiro a verde. O castanheiro que fica em frente à Azoiaplás mercê ser visitado e que alguém se queira estender debaixo dele para fazer o que quiser. Os amantes também lá podem trocar carícias e, sobretudo, abraços e beijos, para que não fiquem só nos sonhos todos os desejos inconfessados. Hoje, começou a criação do mundo. Eva e Adão estão prontos para comemorar o nascimento de uma nova terra. Fica decretado que se pode dizer e sentir o que é bom, seja lá aquilo que for. O decreto máximo é que todos assumam a felicidade e que extirpem do seu coração os preconceitos e a malícia que provém de séculos e séculos de infelicidade. Fica decretado e bem decretado que o salmo mais bonito da Bíblia é o que se vai escrever ainda quando todos ou quase todos, ou apenas um só, queira arriscar em andar por aí, descalço, passar por rios ou riachos, molhar-se com a água das fontes e estender os braços numa das encostas da Quinta dos Frades e gritar que é livre e não mais quer ser escravo da desdita e do que lhe obrigam a fazer contra sua vontade. Fica também decretado, ainda que me chamem louca ou alienada, que a utopia pode ser uma opção de vida tão real e tão válida como uma nota de quinhentos euros pela qual suspiram os desenfreados. As cerejas porque são vermelhas e ardentes substituem todas as alíneas deste decreto. O amor pelo mar e pelas ondas que rebentam na areia é o parágrafo único do encontro e da suavidade de duas mãos e de dois braços. Para aí se encaminha o luar e a noite que espreita para dentro do meu quarto. Hoje os pássaros cantam ainda mais e eu ouço-os cantar nitidamente como se estivesse escondida debaixo de todas as asas. O decreto imanado da terra, explicita que o grito das searas está prestes a ser consumado. Basta que as papoilas assinem com o vento o acordo que proclama insofismável a soberania da flor dos tremoceiros bravos. As rosas não têm nada a acrescentar, a não ser aquelas que crescem ao desbarato nas ribanceiras, à beira da estrada. Ao pé da casa do Machado corre um riacho. Hoje a água está transparente e nela mergulham as raízes das caneiras que reverdejam grossas e fartas. O decreto que acabo de escrever foi assinado, junto desse riacho, com a explosão do meu êxtase quando, ao passar por lá, senti que não era nada, mas era Tudo o que me rodeava e o Todo e o Tudo é que tornam incomensurável o meu nada.
Decreto final, expresso esta tarde.
Cuidem dos jardins, cavem a terra e permitam que as flores vos perfumem as mãos. Sintam nas veias correr deleitoso do sangue que sugou a cor e o porte de um girassol que cresce à porta das vossas casas. Se ainda o não semearam, procurem as sementes que caíram por terra dos vasos que se partiram quando dois amantes consumaram no vale as primícias do amor que há tanto tempo acalentaram.
Isto que acabo de dizer fica decretado que há-de ser verdade.
2/05/06
Isabel Vieira
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