Tinha sido uma semana bastante agitada, mas pelos resultados, teria valido a pena. A mãe andava como louca à procura de um pouco de tudo sem saber muito bem o que queria na realidade. Esta era sempre uma época em que ela pouco se dirigia a nós sem ser para dar ordens no que diz respeito ao que teríamos de usar na missa do galo, ou sugestões sobre onde nos deveríamos sentar na noite da grande ceia. Os empregados desejavam que a época se passasse depressa, para que a mãe se acalmasse de vez e a paz pudesse voltar a reinar na casa. Era um sufoco. Compras, compras e mais compras, listas infindáveis de lembranças, rios de dinheiro gastos e o pai sempre calmo mas atento.
Normalmente e porque estamos em época de férias escolares, deitamo-nos um pouco mais tarde. Um pouco depois das 11 horas e quando D. Luísa já não pode mais movimentar-se pelo cansaço e acaba por ir dormir mais cedo que o costume, o pai levanta-se da cadeira onde usualmente fuma o seu charuto e ouve música, ou lê um livro e vai devagarinho à cozinha para tentar encontrar os papéis resultantes das compras do dia. Umas vezes volta a sorrir e encaixa-se novamente no velho sofá, outras, trás uma cara de horror e regressa a resmungar, que tudo o que ganha é gasto em coisas sem interesse, que um dia ele falta e vamos ver o que é a verdadeira pobreza, que não está para trabalhar o dia inteiro para sustentar irresponsáveis, enfim, uma série de coisas entre lábios que eu e a minha irmã só entendemos à terceira ou à quarta vez, embora sejam repetidas pelo menos umas dez.
O meu pai é administrador de um banco e este ano quando fiz 8 anos, cumpriu o que no início do ano tinha prometido : mostrar-me o seu banco. Que coisa enorme. Muita gente, sr. Doutor para aqui, senhor doutor para ali, parecia um hospital. Para mim, os doutores só existiam nos hospitais. Fiquei a saber que nos bancos também andam por lá muitos. No dia 23 de Dezembro eles organizam a festa do banco mas não é possível levar as famílias, por isso tive de fazer a visita mais cedo. A minha irmã que ainda tem 6 anos, ficou em casa.
Na noite de Natal, a mãe já não sabe mais o que dizer, tantas são as ordens, que se acaba por baralhar e aos empregados também. O pai tenta ficar afastado desta confusão para não se enervar, já lhe basta os problemas que tem no trabalho. Mas a casa começa a ficar muito bonita. No jardim colocamos sempre uma grande árvore com luzes como vimos na América uma vez que passámos lá o Natal em casa de uns amigos do pai e enfeitamos as janelas e portas para se ver que nesta casa é Natal. Por dentro, todos os quadros têm também bonitos enfeites e por cima da lareira colocamos sempre quatro meias para os presentes. Quando éramos mais pequeninas, os pais costumavam dar-nos as prendas na manhã do dia de Natal. Como acreditávamos no Pai Natal era sempre uma noite em que raramente dormíamos. Ficámos à espreita, a ver se algum homem barrigudo entrava pela chaminé. Muitas vezes a minha irmã pedia água só para verificar se estava alguém dentro de casa. Mas a Otília sossegava-nos dizendo que não nos preocupássemos, porque só quando estávamos a dormir o Pai Natal descia a chaminé. A Otília era uma das nossas empregadas. A que eu gostava mais. Quando a mãe se irritava connosco era ao seu colo que nos íamos sempre refugiar. Um colo quente, como ninguém. Mas agora abrimos os presentes à meia-noite. Debaixo da grande árvore de Natal que o pai sempre conseguia, e que estava sempre coberta de fitas e luzes de muitas cores, lá estavam as prendas de toda a gente que participava na ceia. Os avós vinham de Lisboa, todos os tios moravam junto a nós aqui em Cascais e acima de tudo era uma alegria com os primos. Brincávamos até quase às duas da manhã entusiasmados com as novidades. Por vezes víamos televisão. Mas não era muito interessante o que dava. Sempre os mesmos filmes e por vezes havia num canal uma história sobre Akawa.
A noite já chegara e eu não sabia muito bem o que fazer. Dantes ainda tinha a companhia do meu pai que nos contava histórias das suas noites longas nas montanhas a tomar conta dos rebanhos. Por vezes pedíamos também que nos contasse as suas aventuras na guerra e como ferido a combater tinha perdido alguns dedos de uma mão. Actualmente reparávamos que era com grande sacrifício que cultivava a pequena porção de terra de que vivíamos. Eu e a minha irmãzinha ajudávamos muito. Já aos 5 anos eu conseguia fazer muito da terra. Agora aos 8 costumava mostrar aos rapazes da aldeia que tinha tantos músculos como eles. Mas na verdade nem tinha. Todos fazíamos os mesmo trabalho.
Mas estávamos preocupados com a mãe. Tinha saído antes de o Sol de pôr em direcção às montanhas e à cidade. Pedimos-lhe que não fosse, porque tínhamos muito para fazer e não havia este ano oportunidade para festejar o nascimento de Jesus na escola missionária. Porque se estava a atrasar tanto ? O pai não sabia muito bem fazer comida e também não havia muita. A mãe traria a comida para esta noite.
De repente chegou um jipe da polícia com 3 soldados. Ficámos assustadas. O pai correu para fora de casa e ficou parado a uns metros do jipe. A mãe chorava e tinha as mãos atadas. Mandaram-nos de imediato para dentro de casa. Ouvimos gritos, choros e o pai a dizer que era noite de Natal, que pedia perdão e que pagaria tudo ainda antes da próxima lua cheia. Mais gritos e de repente silêncio. Horrível quando após tanto barulho toda a gente se cala. Ficámos com medo e escondemo-nos por baixo da pequena mesa de cozinha. Por fim o pai entrou com cara de poucos amigos e a mãe a chorar. Pediu-lhe muitas vezes desculpa e que o iria ajudar a pagar com o trabalho que fosse necessário. O pai levantou a mão mas eu corri de imediato para ele e abracei-o. Vieram-lhe as lágrimas aos olhos e afagou-me os cabelos. A mãe e a mana juntaram-se a nós. Afinal, todos os gritos se tinham devido ao facto da mãe ter retirado de um terreno uma pequena árvore de Natal. Não sei porquê, tinha entendido que seria a nossa primeira árvore e teria de ser este ano. E foi. Colocámos uma fitas de pele de carneiro por cima da árvore e fizemos a pequena refeição de sempre. Era afinal só mais uma noite. Mas aquela árvore significava algo mais. Teria o Natal chegado em definitivo a nossa casa?
Esta era a história de Akawa que vimos uma vez. Creio que era uma reportagem de Natal em qualquer sítio de África. Gostámos. Mas a tia Gertrudes tinha-me dado um vestido lindo. Seria este que vestiria no dia seguinte para o almoço de Natal.
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