segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

O trabalho acumulava-se sob a forma de papelada inútil na secretária mal iluminada. Mas era necessário terminá-lo. Processos sobre processos com fotos de indivíduos que mais pareciam sombras cadavéricas do que alguma vez teriam sido. Muitos deles não estariam vivos nos próximos 30 dias. Mas isso, embora a incomodasse por vezes, não lhe tirava o sono. Era um emprego como outro qualquer e a polícia política do regime até não pagava mal. Acaba mesmo - após receber alguns favores de alguns inspectores - por levar uma vida bastante interessante para a época em que vivia. Acima de tudo era o seu salário que se impunha lá em casa. Quase o dobro do reles soldo que o marido, funcinário público numa delegação de finanças, trazia todos os meses para o pequeno mealheiro.

1964

Ninguém sabia porque desde a semana transacta havia um burburinho no campo que contrastava com o trágico quotidiano imposto desde a sua prisão na Polónia, fazia agora quase dois anos. É certo que se ouviam cada vez mais frequentemente rudes batalhas não muito longe do campo, mas isso já tinha acontecido por duas vezes e não justificou este alvoroço todo. Subitamente, a meio de uma noite de Inverno abriram as portas e berraram para nos apresentarmos no pátio sem quaisquer casacos, tal e qual como estavamos e dormiamos. Estavamos em meados de Janeiro e a neve caía suavemente sob toda a região desde o final de Novembro. Felizmente não havia vento, o que decerto agravaria a situação esta noite. Previa-se uma daquelas palestras que eliminavam pelo menos 8 a 9 indivíduos que se encontravam doentes ou mais debilitados pelo trabalho duro ou qualquer outro factor. Mas não. Quando chegámos ao pátio e para surpresa de todos, apenas um oficial nazi nos esperava. Alinhámo-nos e no meu alemão rudimentar consegui decifrar que a guerra estava praticamente perdida e nada mais haveria a fazer. Ía-nos libertar e naquele momento. Por isso aconselhava-nos a sair do campo de imediato. As portas seriam abertas e a vida lá fora ficaria ao nosso critério. Estavamos pasmados com tal decisão e acima de tudo desconfiados. De repende o aparecimento de outros dois oficiais rodeados por quatro ou cinco soldados fez desencadear uma violentíssima troca de palavras entre o oficial do discurso e outros dois rodeados por meia dúvida de soldados. Em poucos segundos o oficial que nos daria a "liberdade" foi abatido. Todos nos atirámos ao chão para evitar ser baleados. Mas o tiroteio continuava e as descargas de metralha continuavam. A neve branca e suave que me cobria o rosto foi-se tornando gradualmente vermelha. Estive várias horas a suportar o peso dos meus companheiros mortos, até chegarem as tropas aliadas. Não há noite em que não me venha à mente os olhos abertos de Swvarskoff enfrentando os meus. A morte enfrentando a sorte.

1945

Afinal os computadores devem-se fechar ou manter acesos quando deles não nos estamos a servir? Excelente conversa para a hora de almoço. Ninguém chegou a um consenso. Nem mesmo o responsável pelo sector informático - aqui entre nós o verdadeiro parasita - tinha bem a certeza do que dizia. O tema de conversa tinha sido lançado pela Anabela, uma forte adepta da internet e responsável pela introdução dessa ferramenta no escritório, mas sob a ameaça das chefias de que a produtividade não poderia ser reduzida por causa da internet. Anabela certificava-se disso todas as semanas com o seu director e na realidade com o tempo, pese embora uma certa quebra inicial, a produtividade manteve-se e até aumentou devido a informações que mais rapidamente fluiam através da net. Por outro lado e por msn, conseguia ver o filho mais vezes por dia e falar com ele, muitas vezes ajudá-lo nos deveres escolares. Afinal tinha sido uma boa aposta. O ambiente em casa era a continuação do escritório. O marido e o filho ajudavam na gestão da mesma e à noite ficavam a ver um pouco de tv. Depois iam desfrutar das maravilhas da Internet. O João tinham descoberto o Hi5 através do filho e o vício tinha pegado. Construíram três páginas. Uma comum e outras duas individuais. As coisas correram bem durante muitos meses. O seu mundo virtual surgia quase todas as noites após a resolução dos problemas do mundo real. Um certo dia João disse que provavelmente ía terminar com a sua página. Surpresa total. Porquê ? Sentia-se meio desgostoso porque tinha descoberto que a mulher se correspondia com mais amigos que ele e haviam dois que não lhe conferiam muita confiança. Muitos comentários seguidos, muitos corações à misturar, estava tudo a ficar muito meloso. Anabela, para além de surpresa sentiu-se ofendida. Nunca tinha visto uma reacção daquele género no homem com que partilhava a vida havia doze anos. Para ela, o mundo virtual era um mundo de descontracção e puro divertimento. Um descarregar de energias, momentos em que podia mandar as suas preocupações às urtigas tendo obviamente a consciência de que de virtual se tratava e o carinho, amor e dedicação que dava ao marido não tinham sofrido nenhuma modificação. Mas o mesmo não pensava João. Na sombra foi tentando descobrir mais e mais, perfurando as relações virtuais de Anabela. Verificou que um dos seus amigos virtuais era também real. Tratava-se do “saltapocinhas” da informática. Pela primeira vez o ciúme envolveu-lhe o peito e o sentimento de ardor intensificou-se. Pediu para que ela desistisse da página. Anabela recusou argumentando que há muito lhe tinha pedido para continuarem a página comum e ele se tinha recusado. Porque não? João não lhe respondeu. O ciúme toldava-lhe a vista e a razão. Perto do final desse ano e devido ao fecho contabilístico do mesmo, Anabela ía ficando dias e dias a trabalhar até mais tarde, tal como acontecia desde sempre naquele escritório. Mas este ano era diferente. João não pensava em mais nada e tinha-se mesmo tornado rude no trato com a família. Pediu-lhe que não fosse ao jantar de Natal. Ela recusou. Que desculpa iria dar aos colegas? Não fazia sentido. Aconselhou-o a respeitá-la, a dividir as águas e acima de tudo a confiar nela. João nada disse. A noite de 23 de Dezembro parecia ainda uma noite de Outono. Não estava frio e soprava apenas uma brisa. Passavam duas horas da meia-noite quando o informático e uma amiga trouxeram Anabela a casa. Os risos fizeram-se notar na noite silenciosa a um dia do Natal. Anabela saiu do carro abraçada à sua amiga Graça e despediram-se. Vitror – o informático – saiu da viatura e dirigiu-se a Anabela abraçando-a e beijando a sua face esquerda ao mesmo tempo que lhe desejava um feliz Natal. Subitamente e a uma velocidade estonteante, um projéctil voou na noite alojando-se no crânio de Anabela que de imediato se viu empurrada para cima da viatura, descaindo depois vagarosamente para o chão onde depositou uma enorme poça de sangue. À media que o coração ía batendo mais devagar a imagem de João agarrado a uma pistola desvanecia-se acabando por se encerrar. Rosas vermelhas, iguais às que circulam no Hi5 foram a sua companhia na cerimónia fúnebre realizada dois dias após o Natal.

2007

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